Toda incoerência será castigada
Claudinho do Buraco Quente tem 86 anos e é o maior caçador de hipocrisias que esse país já viu. Sempre que se depara com uma contradição, um deslize alheio, seu dedo médio intumesce, fica ereto e jorra o líquido xaroposo da vingança. “Hipócrita!”, ele grunhe, anunciando seu gozo.
Por exemplo: toda vez que é acossado por denúncias de torturas durante o governo militar brasileiro, Claudinho metralha o interlocutor com genocídios de Stálin. “Hipócrita! Chupa!”, conclui.
E se o assunto é a escalada do coronavírus, Claudinho saca outra doença que matou mais pessoas.
Não lhe importa se torturas e genocídios são igualmente execráveis. Não leva em conta a ascensão vertiginosa da escalada do coronavírus nem as alternativas para reduzir as mortes. Seu objetivo é criar uma falsa equivalência que anule o debate. Na lógica binária de hoje, inventar uma hipocrisia é o novo Super Trunfo. É a carta que ganha a discussão.
Pela lógica de Claudinho, mudar de opinião é traição. Imperdoável. Em seu purgatório particular, os supostos hipócritas recebem os piores castigos. Do alto de seu devaneio, ele se considera o oráculo dos cidadãos de bem.
Claudinho não vê diferença entre uma incoerência pedestre, daquelas que nos fazem humanos, e uma falha de caráter, daquelas que nos fazem desumanos. Para ele, o sujeito que diz gostar de chocolate e compra um sorvete de creme é tão hipócrita quanto um pai que oculta uma família fora do casamento há 30 anos.
Um dia, numa manhã de sol, Claudinho conheceu dona Lurdes. Aos 86 anos, dona Lurdes é a maior caçadora de hipocrisias que esse país já viu. Diante de bolsonaristas arrependidos, tem orgasmos múltiplos e sucessivos quando ergue o dedo e dispara: “Eu avisei”.
Dona Lurdes não quer perdoar as pessoas arrependidas de votar nos Bolsonaros. Não lhe interessa iniciar um tempo de diálogo e afeto para trazer de volta a sanidade. Do alto de seu devaneio, se considera o oráculo do pessoal do bem.
Claudinho e dona Lurdes conversaram e, num instante, se desentenderam.
Até tomarem conhecimento do vídeo em que Felipe Neto convoca os influenciadores a se posicionarem contra a escalada de fascismo no Brasil. Estranharam. Mas logo lambuzaram-se com um outro vídeo, mais antigo, em que o youtuber algodão doce assume ter votado em Bolsonaro porque considerava o PT um mal maior. “Hipócrita!”, ele disse. “Eu avisei”, ela disse.
Claudinho e dona Lurdes vão, no fim das contas, reeleger Bolsonaro.