2021, pisa devagar
“Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção/ esconda um beijo pra mim sob as dobras do blusão/ eu quero um gole de cerveja/ no seu copo, no seu colo e nesse bar.”
A canção “Coração Selvagem”, de Belchior, soa mais adequada para anunciar a chegada de 2021. Aquela tradicional, que dá adeus ao “ano velho” e almeja um “feliz Ano-Novo” soa tão sincera quanto a cor do cabelo do general Hamilton Mourão.
E o que é pior: a tradicional canção de Réveillon composta por David Nasser e Francisco Alves profetiza, como numa praga: “Que tudo se realize no ano que vai nascer”.
Além disso, é incontestável que os seus versos não cumprem o que prometem. “Muito dinheiro no bolso” de quem? Quem desejou “saúde pra dar e vender” na virada de 2019 para 2020 sabe do que estou falando. Todos os anos repetimos a mesma ladainha e o mundo foi parar onde está.
A segunda parte, menos conhecida, ainda incorre na ousadia de desejar “para os solteiros, sorte no amor/ nenhuma esperança perdida/ para os casados, nenhuma briga/ paz e sossego na vida”.
“Meu bem, mas quando a vida nos violentar/ pediremos ao bom Deus que nos ajude/ falaremos para a vida/ vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil/ meu coração é como um vidro, como um beijo de novela.”
Não se sabe ainda se 2021 será uma ressaca de 2020. Ou uma nova temporada, com mais orçamento, mas com os mesmos atores.
O ano de 2019 se impôs como um bode na sala. Em 2020, a impressão é de que o bode saiu. Mas saiu correndo, assustado, quando as dezenas de cabeças de gado chegaram à sala para nos acompanhar durante o confinamento. Impossível passar um dia sem ouvir mugidos.
Não sabemos ainda se 2021 será a vez de os jacarés sentarem em nossos sofás ou se voltaremos a viver na companhia de animais domesticados.
“Mas quando você me amar/ me abrace e me beije bem devagar/ que é para eu ter tempo, tempo de me apaixonar/ tempo para ouvir o rádio no carro/ tempo para a turma do outro bairro ver e saber que eu te amo.”
É o caso de desejar mais copo, mais colo e mais bar. Mais tempo para ouvir o rádio do carro. Mais tempo. Ou, ao menos, ambicionar o fim desse peso que nos fere as costas.
Ano passado eu sobrevivi. Mas esse ano eu sobrevoo.